Os meios chamados sociais, servem para partilhar todo o género de conteúdos.
Há um actor, um tipo novo com ar simpático, chamado Marco Paiva, que é Director do Crinabel Teatro, um teatro que este ano completou 31 anos de existência!
Resiliência em forma de necessidades especiais, de sentimentos, de arte.
E se o Marco partilha fotos e comentários de mil maneiras, desta vez, e a pedido da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas o Marco escreveu um texto onde aborda o tema "arte e a emoção".
Sempre acreditei que a criação está directamente ligada à ideia de amor. Hoje foi um dia de amor.
A Faculdade de Ciências Sociais e Humanas convidou-me a escrever um texto para um seminário sobre <<arte e emoção>>. Sei lá eu o que é isso... Mas há semelhança do que faço das outras tantas vezes que me pedem para escrever sobre coisas que não entendo, lá escrevi. Na verdade acho que não entendo nada e sinto-me cada vez melhor com isso. Mas aqui fica o texto. É muito longo. Não percam tempo a lê-lo. Isto tudo para dizer que hoje foi um dia feliz, verdadeiramente emotivo e incomparavelmente mais Belo do que qualquer obra de arte.
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Crinabel Teatro – Da utopia à felicidade
- Arte, felicidade, criação, emoção, fronteira
Caros amigos, começo este meu texto com um pedido de desculpa antecipado. Peço-vos então desculpa pela distancia que efectivamente existe entre a partilha que aqui farei da minha experiência junto do projecto Crinabel Teatro e a sua fundamentação académica ou teórica sobre a qual, confesso, não me tenho debruçado.
A minha aproximação à arte, mais especificamente à linguagem teatral deu-se por mero acaso. Não foi de todo uma aproximação consciente ou uma necessidade, ou outra qualquer inquietação criativa que me levou ao encontro do teatro, do cinema, da literatura ou da musica. O que de facto e de forma muito concreta me levou ao encontro da criação artística, foi a simples necessidade pessoal de estar fora. E não existe aqui nenhum tipo de jogo metafórico. A ideia de estar fora é muito concreta. Estar na rua, circular, apanhar ar, ficar sentado a observar o quotidiano, poder sair para estar com os outros.
A possibilidade de fazer teatro foi o recurso que me caiu nas mãos para efectivar esta necessidade. Um amigo professor, perguntou-me um dia se eu não gostaria de me juntar a um grupo de gente da minha idade (tinha eu na altura 20 anos), para ler um livro e jantar fora. Retive imediatamente, dos três pontos sugeridos, os dois que para mim me pareceram mais aliciantes: “juntar-me a um grupo” e naturalmente, “jantar fora”.
Era para mim suficiente há altura, aquele ritual iniciático de conhecer o outro, de me permitir e disponibilizar para estar presente num lugar novo a falar sobre seja o que for. Estar, falar, escutar e trocar sem outro tipo de compromisso. Essa era a minha felicidade concretizada, era o meu suficiente. Mas depois do primeiro jantar veio o primeiro livro. E foi aí que chegou o incomodo, a estranheza, a agitação, a necessidade de escavar o que parecia suficiente e reencontrar a uma maior profundidade os actos aparentemente triviais de estar, falar, escutar e trocar.
O que estava à minha volta redimensionou-se. O Mundo ganhou uma escala mais próxima do seu tamanho real; na verdade o Mundo extravasou a lógica da sua própria proporção. Começaram a chegar os autores, as grandes encenações, os compositores, os filmes que fui vendo repetidamente, a luta contra o que ia descobrindo e tentando entender. E quanto mais conhecia, mais me inquietava. Enchia-me de duvidas, debatia-me com as diferentes verdades sobre a mesma coisa, tornava pouco a pouca os dias e as noites mais confusos, menos serenos e descansados. Mas ao mesmo tempo ansiava pela hora de acordar e continuar a travessia. Comecei a perceber que quanto mais Mundo conhecesse, mais quereria estar presente a dialogar, a por em causa, buscando ainda de forma inconsciente, uma ideia de construção colectiva.
1) O projecto Crinabel Teatro – Olhando institucionalmente
O grupo CRINABEL TEATRO fundado em Outubro de 1986, é um projecto da Crinabel, Cooperativa de Solidariedade Social, CRL e nasceu de um atelier de actividades expressivas já existente na instituição. Em 1989 iniciou 4 anos de Formação Profissional em teatro, subsidiada pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional. Durante a sua formação, receberam aulas de interpretação, voz, dança, música, maquilhagem, mímica, história do teatro e técnicas circenses, todas administradas por profissionais devidamente credenciados, perfazendo um total de mais de 5000 horas de formação. Paralelamente continuaram a sua actividade, levando os seus espectáculos um pouco por todo o país e estrangeiro, participando em festivais internacionais em Espanha, França, Reino Unido, Escócia, Itália e Brasil. Este grupo é pioneiro no nosso país e raro a nível internacional não só pela especificidade dos elementos que o compõem como pelas opções artísticas que lhe têm servido de base.
Organizou 4 edições do Encontro Internacional de Teatro Especial, e desenvolve desde 2011 o programa “Laboratório Teatral” que visa realizar anualmente um conjunto de acções de formação dirigidas a técnicos de ensino especial e utentes de instituições congéneres, procurando partilhar as metodologias de trabalho usadas no seio do nosso projecto, promovendo e incentivando outras instituições a estruturar e clarificar metodologias de criação a partir da linguagem teatral, junto das populações com as quais trabalham.
Neste Momento, centramos a nossa acção numa divulgação e estudo mais aprofundado das implicações da arte junto da pessoa portadora de deficiência, tentando estabelecer por via de estudos e parcerias, uma metodologia de intervenção mais consciente e justificada. Prova disso é a mais recente parceria no projecto europeu Proskils, que visa reunir estruturas pedagógicas de alguns países da Europa que apliquem a arte como ferramenta educacional junto de populações com necessidades sociais especiais. Procurámos nestes últimos anos, reflectir o percurso feito, não só no âmbito artístico mas também pedagógico, tentando elevar a qualidade do nosso discurso criativo e da nossa intervenção social e pedagógica. O projecto conta actualmente com 12 interpretes com deficiência cognitiva.
2) O projecto Crinabel Teatro - Sobre o coração, as artérias e as veias
Passaram 31 anos. Fomos crescendo com todos aqueles que fizeram parte desta casa. Soubemos aprender com os erros e continuar a encontrar caminhos, nunca permitindo que nos fechassem a porta nem que o individual destruísse a importância do colectivo. Quando as coisas ficaram por um fio, encontramos na necessidade de partilha o sentido para alcançar um futuro.
Se em 1986 o enquadramento de um projecto como a Crinabel Teatro se apresentava como uma novidade e uma aventura que muitos poderiam afirmar como inabitável, hoje, em 2017, 31 anos depois e já com muitos e bons projectos similares ao nosso, dispersos de norte a sul, tudo isto continua a ser para muitos uma novidade e sem duvida uma aventura que apesar de habitável, continua a ser coisa para correr riscos, sem caminho certo, numa espécie de travessia à deriva.
Na verdade terá sido também o apetite por essa aventura meio rebelde que alimentou a vontade de não parar. Mas o que de facto garantiu a nossa continuidade durante estes 30 anos, foi a necessidade de todos os interpretes que por aqui passaram em dialogar com o Mundo.
Através da ideia, do verbo, do gesto, do aplauso, do jantar e dormir fora de casa, das viagens, das saudades do passado ou da ânsia de não perder o fio ao futuro, ergue-mos as nossas historias, criamos o nosso referencial, utilizando depois o teatro como maquina privilegiada da construção da ilusão, transformando os nossos mundos em universos paralelos, encontrando ai uma possibilidade não de alcançar respostas, nem sequer de colocar questões, mas de nos mantermos vivos, activos e implicados na desconstrução das verdades absolutas.
E como crescer implica operar mudanças, fomos também alterando a maneira de procurar o nosso teatro. Se ao inicio os nossos processos se centravam na urgência de decorar, passamos depois para o imperativo de procurar. Procurar até ao limite do possível, através de conversas, partilha de saberes e consciências, improvisações, erros, muitos erros, escrevendo e rescrevendo ideias, mexendo até ao ultimo dia nas lógicas da cena, evitando o conforto e o facilitismo da primeira coisa que aparece. Pôr em causa, pôr sempre em causa, mesmo depois de terminar... Se for possível, nunca terminar. Que uma coisa leve à outra e que o futuro seja sempre a continuação do hoje, mas melhor. E tudo isto somando ritmos completamente diferentes, experiências e capacidades tão antagónicas que poderiam parecer entraves a construir seja lá o que for. Mas na verdade é este o segredo de todo o nosso processo: somos tão diferentes uns dos outros que até nos momentos em que não nos fazemos entender, criamos pontos de partida para qualquer coisa que será de todos. E aqui quando dizemos todos, somos realmente todos. Cada um sabe o seu papel e a função que tem, somos todos co-criadores e responsáveis pelo nosso trabalho.
3) Crinabel Teatro – Sobre a arte, a felicidade o fim das fronteiras
É urgente permitir que a sensibilidade faça parte não só da comunicação com o outro, como também do acto criativo, nivelando-a com a destreza racional cada vez mais presente nas pessoas do nosso tempo.
Não nos basta a informação cultural, a fruição do conhecimento, o domínio sobre as tecnologias e os infinitos estudos científicos. Necessitamos de reencontrar o toque, a atenção sobre o outro, o estar presente, o contacto visual de qualidade com o que nos rodeia, a escuta, a ânsia de conhecer a complexidade das coisas simples e comuns, que estruturam o dia a dia.
Penso então que o trabalho desenvolvido pelo projecto Crinabel Teatro, as metodologias utilizadas e o exercício pratico criativo dirigiu-nos a um compromisso claro: conhecermos o Mundo nas suas diversas camadas e consequentemente sermos felizes, não por nos limitarmos a habitar a fronteira, o perfil, as expectativas ou as ideias que a sociedade traçou para o cidadão portador de deficiência intelectual, mas sim pela audácia de tomar decisões individuais, de traçar caminhos enquanto colectivo e de utilizar o maior bem que o acto criativo nos atribuiu: o espírito critico.
Entendo que para irmos clarificando e continuando a estruturar essa ideia de felicidade, é necessário reequilibrar o nosso universo racional com o sensível. Isto é: equilibrar a relação entre o que o Mundo tem para me oferecer, aquilo que de facto eu necessito dele e a forma como eu o quero ocupar.
A ideia de fim que lemos em Beckett ou nos textos anarcas de Gregory Motton, a relação com o poder que encontramos em Brecht, a falência humana de Franz Kafka, as sociedades modernas de Koltes ou a necessidade de ruptura que encontramos em Ionesco, habitam também as nossas conversas, as palavras que são as nossas. Antes de decorarmos os grandes autores é preciso encontrarmo-nos neles, guardando nas gavetas da memória aquilo que nos oferecem, para mais tarde ir de novo ao seu encontro, procurando que nos ajudem a referenciar o nosso discurso, a nossa posição, as nossas frágeis e voláteis verdades absolutas, a consciência sobre o que de facto nos inquieta.
Termino este meu texto assinalando que muito provavelmente não inscrevi nestas linhas a palavra emoção. Não o fiz de forma propositada. Fi-lo porque muito provavelmente a ideia que tenho da emoção na arte, transcende a minha capacidade de escrita. Talvez porque por incompetência, a minha ideia de emoção aproxima-se mais de uma travessia inexplicável, invisível, tão assustadoramente veloz, que a minha imaturidade ainda não me permitiu fixa-la num texto. Permitam-me esta liberdade de voar. Prometo em breve fixar os pés no chão.
http://www.sabado.pt/gps/palco-plateia/teatro---danca/detalhe/conversa-com-o-director-do-crinabel-teatro-que-faz-30-anos